A “verdade histórica” e mais um desafio aos historiadores
A nova “polêmica” da praça é o debate inócuo sobre o nazismo ter sido um movimento de esquerda ou de direita, com seus respectivos extremos. (Reviram-se em seus túmulos e camas os que propuseram a ideia de uma terceira via.) Pois bem. Isso me pôs a pensar numa coisa que já havia pensado quando, há um tempo, outra “polêmica” estava em voga: a inexistência da ditadura militar no Brasil.
Em geral, os questionamentos das pesquisas sérias são feitos por pessoas que não são treinadas nos métodos históricos, sociológicos, etc. No que diz respeito à minha área, de história, fico pensando que ela se tornou essa várzea porque, ainda hoje, admitimos (em nossas pesquisas, em nosso ensino — do básico ao superior) a ideia de que existe uma verdade histórica.
Quando estudava para minha pesquisa de mestrado, li um historiador suíço (muito pouco lido por nós, por sinal) chamado Paul Zumthor, que fez a Idade Média seu objeto por bons tempos. Lendo Falando de Idade Média para entender um pouco melhor seu pensamento sobre o período, já que iria torná-lo meu carro-chefe no departamento teórico, algo me impactou muito. Zumthor corta laços com a noção de verdade em relação à produção historiográfica.
Bom, melhor do que o próprio autor, não há: “A passagem da documentação à interpretação, da escritura documental à leitura que, “graças a ela”, vai ser feita da “história” leva assim de um termo realmente fragmentário a um fim virtualmente totalizante” (p. 108, grifos do original). O que Zumthor quer dizer aqui? Os documentos, as “fontes” históricas, são apenas fragmentos de uma realidade que não existe mais. O papel do historiador é “articular cada fragmento à série dentro da qual ele se dispõe” (loc. cit.). Com a série construída, o historiador tem um panorama — ou, melhor dizendo, um pontilhado. Pois é isso. A história é apenas virtualmente, nunca realmente totalizante. Os espaços entre os pontos são preenchidos pela interpretação.
Quando o historiador interpreta ele pinta o panorama. A imagem do passado não existe de forma completa sem a interpretação do historiador pois, afinal, o passado não existe mais: ele já foi, portanto inexiste no presente. Dele, restam apenas fragmentos. E esses fragmentos são pedaços não de uma verdade, mas sim de uma realidade que não existe mais. Existe diferença entre verdade e realidade. E essa diferença parece ser largamente ignorada por um público amplo e, de forma mais grave ainda, pelo público específico de historiadores e professores de história.
A realidade é aquilo que nós vemos, vivenciamos. Mas, sempre, no presente. O real é incontestável. Uma cadeira é uma cadeira. A falta de comida é a falta de comida. Chuva é chuva. O verbo ser no presente do indicativo comanda aqui a coisa toda. Um pedaço de madeira foi uma cadeira? Um pedaço de madeira pode ter sido uma cadeira; mas pode, igualmente, ter sido um banco. Um pedaço de madeira é indício, resto, fragmento de algo que já não existe mais da forma como foi feito. Portanto, é um pedaço de uma realidade que não existe no presente; mas, existiu em um presente anterior, portanto, no que chamamos de passado.
Se o historiador consegue provar que aquele pedaço de madeira foi uma cadeira ou um banco, ou o que quer que tenha sido, essa prova não é incontestável. Porque o que quer que tenha sido reconstituído pela interpretação do historiador não voltou a existir. Toda interpretação é passível de questionamento. “Contra fatos não há argumentos”, diz o ditado. Sim, pois fatos são coisas da realidade. E a realidade é incontestável. O que não significa que qualquer coisa dita sobre a realidade seja, ela também, incontestável. Sobretudo uma realidade passada.
A realidade passada é inalcançável, inatingível. Ela não existirá de novo. Dela podem apenas sobrar os fragmentos que montam o pontilhado da série com que trabalhará o historiador. E ao preencher as brechas do pontilhado cria-se uma imagem apenas virtual: “que existe potencialmente e não em ação” (definição do Dicionário Priberam). A interpretação de fatos, de fragmentos de realidade, só pode explorar o potencial, as possibilidades que esses fatos proporcionem. Sendo assim, os cadáveres dos judeus mortos nos campos de concentração não podem ser negados. O que significa ser inegável o Holocausto. Esses corpos foram vistos, tocados, cheirados por todos aqueles soldados aliados que liberaram os campos. Foram registrados em fotografias. Esses fragmentos não são negáveis.
Quando as pessoas se dedicam à busca de uma “verdade histórica”, elas querem saber se o que ocorreu de fato corresponde à expectativa delas. Porque a verdade é isso: nossa expectativa sobre a realidade. Tanto é que, às vezes, ocorre de uma pessoa contar um causo de um jeito e outra pessoa, de outro. E ambas estarem certas, com omissões aqui e acolá. Essas pessoas jamais poderiam recriar o causo. Não vai rolar. Ele já passou. Verdadeiro e falso são coisas relativas. O que é verdadeiro para mim pode ser falso para outra pessoa. Eu posso crer que Capitu traiu Bentinho, bem como outra pessoa pode crer o contrário. E nenhum de nós está convicto da verdade ou falsidade da situação.
Sendo assim, o historiador não trabalha sobre a verdade; ele se debruça sobre fragmentos de uma realidade que não existe mais. Muito menos o historiador produz uma verdade: o discurso histórico, a historiografia, por princípio científico, é falseável, é questionável. Assim, urge que os historiadores e professores de História reformulem seu pensamento e suas práticas didáticas quanto a isso. Da História não se pode esperar verdades. No máximo, verossimilhança. Zumthor, uma vez mais, com a palavra:
“Se, recusando também um agnosticismo sumário, insisto no aspecto ficcional do texto que escrevemos, é porque não existe verdade nele: ou, sobre ele vale dizer, que a verdade não é apenas uma.
Nós o sabemos, em princípio, mas um longo costume mental nos leva ainda, quando relaxamos o controle crítico, a supor no conteúdo de todo discurso um caráter binário: verdadeiro ou falso. Em se tratando da informação bruta, da arqueologia material, a historiografia certamente comporta verdade ou erro e a primeira é preferível. Mesmo que seja muitas vezes desconfortável traçar aí uma fronteira que a erudição não cessa, felizmente, de contestar, a passagem à narrativa, implicando na interpretação, nos faz sair destas categorias. Apresentado, ao mesmo tempo, como conhecido e implicado na operação discursiva, o conjunto postulado e resultado da análise, o “fato” não é mais que unidade constitutiva de uma significação dinâmica, atravessada de tensões que só uma retórica falaciosa iria dissimular. A verdade só se impõe em detrimento do sentido.
Entre os “fatos”, constatemos a diversidade de suas relações, verticais ou horizontais, de semelhança, de diferença, de proporção, de junções, disjunções, interferências… Mas vamos nos proteger de pensá-los em termos de causalidade: seria melhor pensar em analogia que deixa, por assim dizer, mais margens à liberdade da história: non verum, sed verosimile ensinava, por volta de 1130, Abelardo” (pp. 117-118, itálicos do original, negritos meus).
Portanto, como disse Abelardo: não verdadeiro, mas verossímil. A tal “verdade histórica” buscada por alguns só virá para impor em detrimento daquilo que faz sentido, daquilo que reconstrói de forma mais fidedigna, mais verossímil, o passado.
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ZUMTHOR, Paul. Falando de Idade Média. Trad. Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Perspectiva, 2009.